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DAS SOMBRAS DA MALDADE AO FOGO DO AMOR: Nem tudo é maldade






Poucas marcas de vela após ter finalmente conseguido  encontrar-se com o sono, Xena já se colocava de pé encaminhando-se a sua sala de banho. Seu banho cuidadosamente estava preparado, mergulhou naquela água morna na esperança de encontrar um dia menos desagradável que o anterior, embora soubesse que o dia seria de intermináveis audiências publicas, julgamentos e membros da corte aborrecendo seu juízo com os monótonos assuntos do governo. Tinha decidido também  marcar uma audiência com Nereu  e alguns generais de sua confiança para falar da ameaça que se encaminhava aos portões de corinto. Sabia que em pouco tempo teriam uma batalha para se ocupar e aquilo lhe agradava, pois a monotonia do governo  a chateava profundamente.

Saindo do banho vestiu-se com um longo vestido de tecido  fino de cor clara, com as mangas longas e largas e que a deixava ligeiramente com um ar ainda mais imponente. Seus negros fios estavam soltos, e acima do ombro percebia-se um hematoma causado pela queda da noite anterior. Estava dolorido e com um pequeno corte ao centro e aquilo a fez bufar.

Ainda era muito cedo e o movimento pelo castelo se fazia quase nenhum se não pelos servos da cozinha e dos estábulos. Antes de se encaminhar para a sala de audiência a imperatriz perambula pelos corredores do castelo e sem saber o  porque  pouco depois estava nos arredores da cozinha. Em uma nota mental não conseguia entender o que fazia ali. Naquele ambiente que era talvez um dos mais acolhedores daquele castelo frio, Xena encontra a figura de Mira perdida em distração com seus afazeres e então dirige a voz à escrava que ainda não tinha notado sua presença:

- Mira, às vezes tenho a sensação que você dorme abraçada a essas panelas. -  riu com bom humor contrariando o que seu rosto mostrava.

- Diferentemente de você, Xena, aqui é meu lugar, quem está em lugar errado aqui  é você.

Enquanto falava com Mira, Xena dava voltas ao lugar como se procurasse algo.

- Está precisando de alguma coisa, menina? Você nunca vem aqui.

- Não preciso de nada, de repente estou procurando alguma escrava velha e insolente para castigar.

Interrompendo o sorriso de Mira e ainda repassando  o lugar com os olhos, Com desinteresse aparente ela lança uma pergunta:

- Onde está a sua sombra loira?

Nesse momento a imperatriz se assusta com o que acabara de dizer “Que diabos me interessaria saber de uma escrava?”

- A menina está doente, Xena, já estava fraca e chegou aqui tinha dias que não comia, e o inverno está impiedoso, não consegue ficar de pé.

- Então agora os escravos de minha fortaleza se dão ao luxo  de não  se colocarem de pé para trabalhar?  Eu devo  mesmo estar ficando frouxa, vou ter que espetar as tripas de alguém para que me respeitem, só pode ser isso.

Aproximando-se da velha com um olhar frio como o inverno Xena brada:

- Vá colocá-la de pé  e leve-a a minha presença na sala de audiências imediatamente.

Xena se vira feito um trovão corredor afora, e Mira em nada entendia aquela atitude, mas se pôs a fazer o que ordenara.

Chegou à cela úmida e muito fria em que estava Gabrielle, e tocando-lhe o ombro diz:

- Menina, você precisa se levantar, a conquistadora quer vê-la e em nada posso lhe ajudar, a não ser tirar você dessa cama  antes que ela venha lhe arrastar pelos cabelos.

Gabrielle ergue o olhar a velha senhora e diz:

- O que ela quer de mim? Maltratar-me como fez com Melina?

Sem entender o que ouviu e achando ser uma alucinação  por causa da febre, Mira ergue a menina da cama e praticamente a arrasta até a presença da conquistadora.

Quando adentrou a sala arrastando Gabrielle e deixando-a de frente a conquistadora, Mira tinha um olhar curioso para saber o que aconteceria, carregava a certeza que levaria no mínimo uma surra por não ter se colocado de pé ao trabalho  como os demais, sabia que Xena não tolerava esses dissabores.

- Mira, volte para a cozinha, alguém nesse castelo tem que servir para alguma coisa.

- Sim, senhora conquistadora. - virando-se nos calcanhares, tudo que se ouve é a porta se fechar.

- Então tenho uma escrava que não gosta dos serviços?

Gabrielle se encolhia de medo na presença de Xena, tinha os olhos cheios de lágrimas e mal conseguia ficar de pé.

Xena andava a sua volta bem próxima de seu corpo, enquanto pronunciava em tom ameaçador:

- Pensa que é dona de sua vontade? Que pode escolher em não se por de pé? - E agora a sua frente segura seu queixo forçando o olhar e grita – RESPONDE ESCRAVA IMUNDA!

- Senho... Senhora, eu não quis aborrecê-la... Só, só não me sinto bem...

- Ouça-me bem... - dizia Xena aproximando tanto seu rosto ao  da escrava que podia sentir aquela fraca respiração tocar sua face - ESCRAVOS NÃO TÊM DIREITO A NAD...

Nesse momento Gabrielle não suporta mais sustentar seu corpo, e desmonta na frente de Xena, que por reflexo ou não segurou feito um raio aquele corpo agora inerte. Ao sentir o contato com o corpo pode perceber o quão quente estava, e que aquele pequeno ser se não fosse rapidamente cuidado seria  só mais um escravo morto em algumas marcas de vela.

A escrava pesava tão pouco que Xena mal se esforçou para erguê-la. Abrindo a porta segue com ela corredor afora, levando-a direto a sala de cuidados onde somente seus soldados eram tratados, escravos não tinham direito a cura. Deixando ela sob uma maca, Xena vai ao quartel  onde o curandeiro se punha, e o arranca da cama  pela gola da veste, ordenando aquele homem que ainda dormia ir imediatamente à enfermaria para cuidar de quem precisava, e  perto de seu ouvido em um rosnado disse:

- Uma palavra sobre quem está lá dentro e ganhará uma rápida passagem ao tártaro.

O homem saiu apressado e sem nada entender rumo à enfermaria. Xena voltou à sala de reuniões onde em breve se reuniria com membros da corte.

Ao entrar no espaço dos doentes e feridos, o curandeiro se dá conta do motivo da ordem de Xena, na maca surrada tinha uma escrava. Nunca havia ocorrido igual antes. Sabendo que lhe cabia a morte se não fizesse como foi ordenado, ele nota o estado da escrava que ardia em febre... Por algum motivo  sabia que teria problemas se não tivesse êxito em seus cuidados e assim rapidamente começou a manipular algumas infusões para os cuidados.

O dia passou e lá estava Xena absorta em intermináveis audiências de  camponeses que queriam a chance de prosperar, bandidos imundos que viviam por aterrorizar pequenas cidadelas a volta de corinto,  e nobres aborrecidos querendo tirar vantagem daquela governante.

Xena ouvira tudo  com impaciência, sorveu várias taças de vinho  pra não morrer pregada naquele trono. No fim daquele aborrecido dia, ainda reunida com seus generais, Xena comunica sobre o exército que se preparava para entrar em combate com Corinto e contrariando a todos  a imperatriz comunica que os esperará avançar até as proximidades da fortaleza. Queria estar pronta pra receber o ataque, mas não iria deslocar seus homens para pegar Batios antes dele se aproximar. Ansiava um bom combate e pessoalmente treinaria seu exercito para defender seu reino, e isso  implicava desde treinamento no pátio a construção de poderosas defesas. A verdade é que a impiedosa queria  sentir de novo o gosto de estar em campo. Os generais não concordavam em nada e considerava muito perigoso o que a imperatriz planejara, mas não havia homem naquela sala pra lhe dizer o contrario.

Os últimos raios de sol estavam se encaminhando atrás da montanha, os comandantes saíam porta afora quando o General Lugo permanece até que todos tenham ido. Selando a porta atrás de si, se aproxima da mulher impassível a sua frente. Lugo era jovem, alto e forte. Tinha um corpo torneado forjado em bons combates. Muitos imaginavam, mas  ninguém de fato sabia da proximidade da imperatriz com tal general, e usando de sua intimidade para com a senhora do mundo lhe lança um olhar que muito dizia, mas de seus lábios pouco sai:

- Xena, sabe quanto perigoso é o que você arquiteta, tem um traidor em vosso castelo e ainda assim você resolve se por a risca dessa forma, quero cuidar pessoalmente de sua segurança junto de Nereu.

- Faça isso Lugo, se é imbecil o suficiente para querer salvar o que não tem salvação a todo preço, então se arrisque.

- Xena, você sabe que eu...

- Cala essa boca, não quer que eu lhe lembre de onde está agora o ultimo que se atreveu, suma da minha frente e não me aborreça a volta com isso.

- Sim, senhora conquistadora.

A imponente mulher sorria ao saber o que causava naquele homem e sabia de seus sentimentos para com ela... “Que tolice”

Xena seguiu para seus aposentos, e uma estranha sensação lhe tirava a paz, era certo que estava preocupada com a batalha que se encaminhava, mas era incapaz de aceitar a sua própria inquietação. Mais uma vez o sono não afortunava aquele corpo cansado que estava sob aquela confortável cama que abraçava seu copo nu... Os olhos azuis se abrem frente à escuridão, e em pequeno espaço  de tempo, aqueles mesmos olhos brilhavam na escuridão da fortaleza. Xena pressionou a mão contra uma pedra que estava atrás de uma tapeçaria de  seus aposentos e descia a escadaria a largos passos, em pouco estava no meio do pátio dos soldados, sozinha, com uma túnica fina, quase transparente. Encaminhava-se para um anexo do seu castelo onde ficava a sala de cuidados... Pouco depois de cruzar os batentes da porta seus olhos foram aquecidos pela visão do pequeno amontoado humano que ainda estava no mesmo lugar que deixara na manhã daquele dia.

Jogada a própria sorte, a escrava passou ali as longas marcas daquele doloroso dia. Não existia uma parte daquele pequeno e frágil ser que não doía. Recebeu os cuidados designados em tom de ameaça da conquistadora e ali fora deixada, esquecida. Gabrielle, à volta com seus pensamentos ao longo do dia, só conseguia pensar em quão insignificante era, a ponto de ninguém se lembrar de que ela estava ali, sem pão, sem água, e com sua vida escorrendo como as areias do tempo. Afinal quem se preocuparia com uma escrava, ainda que nem escrava fosse...

Xena ficou parada na porta da habitação não menos fria que o pátio externo, amaldiçoando a si mesma por estar ali sem mesmo saber por quê. Por um momento lhe ocorreu que ninguém além do curandeiro sabia que a menina estava ali, e um pensamento lhe fez sentir uma dor que não era física... Provavelmente a menina não tinha sido alimentada mesmo estando muito doente. Há muito que aquela sala de cura não era usada, estando sozinha ali não teria encontrado algo pra comer e beber, não naquele estado.

Aproximou-se da pálida figura, que parecia não ter um sopro de vida. Por um motivo que desconhecia, quase que involuntariamente seus dedos tocam o rosto da jovem,  que com um sobressalto quase cai da maca.

- Eii! Que diabos que você só anda assustada?

Gabrielle num fio de voz diz: 

- Medo é tudo que um escravo pode ter.

Sem nada a dizer, a alta figura que estava ali encarando a escrava pergunta:

- Tem fome?

Um breve menear com a cabeça respondia quase um sonoro sim.

- Consegue andar? - pergunta a alta mulher.

- Eu... Eu não sei senhora.

Impensadamente a imperatriz pega a figura nos braços conduzindo-a pelo pátio entrando pelo mesmo caminho de onde veio. Em alguns passos a mais Gabrielle estava em um quarto no corredor superior do castelo, um lugar onde ela nunca estivera, diferente da fria cela da parte externa. Gabrielle sentia um pingo de dignidade e não entendia o porquê de estar ali. Deixando-a lá Xena desce pelo corredor de serviços e em seguida estava às voltas da cozinha onde recolhe queijo, água, pão.


 “Que diabos estás fazendo, Xena? Estás mesmo velha e mole, é só uma escrava”

Envolta nesse pensamento voltava àquele simples aposento, e uma lembrança talvez justificasse suas atitudes: o frio e a fome por ela sentidos em outro tempo, em uma distante realidade. Naquele castelo de tudo acontecia, mas eram ordens da imperatriz que ninguém sentisse fome, pelo menos os que viviam em acordo com suas ordens.

Ao voltar àquele espaço que envolvia uma petrificada Gabrielle, Xena põe a sua frente o que trouxera e ordenou que comesse. Ao provar a água e o pão, a jovem escrava  para diante do que estava fazendo encarando a imperatriz  que estava ali na sua frente em silêncio e em uma posição muito  desconfortável por ser quem era e fazer o que fazia, quando  teve seu pensamento interrompido com palavras que pairaram com tanta suavidade que chegava a ser quase um choramingo...

- Senhora, está ferida. - dizia e apontava o ombro da conquistadora.

Xena olha por cima de seu ombro.

- Que Hades, era só o que me faltava. Coma, pois quero lhe falar, Gabrielle.

Sem muito pensar, aproximou-se da alta figura, talvez duas cabeças maior que si, e  com suavidade de  um ser divino toca a ponta dos dedos afastando o tecido que agora estava grudado  no sangue de sua senhora.

Ao sentir o toque, Xena arregala os imponentes olhos azuis, dor é tudo o que tinha naqueles olhos, dor essa que não era causada pelo ferimento. O toque parecia ter machucado a guerreira.

- Senho... Senhora, posso ajudá-la com isso, passar uma bandagem e limpar seu ferimento.

Xena rapidamente pega o punho da escrava apertando tanto que quase o quebrara.  Os olhos de Xena eram puro pavor, nunca deixava ninguém se aproximar dela daquele jeito e tão pouco procurava aproximação com quem quer que fosse, e foi nesse momento que se dava conta do que estava fazendo, mas ainda assim...

- Coma primeiro, não tenha medo de mim, então ai  você dá jeito nisso, e quero lhe falar...

A próxima marca de vela que se passou perdeu-se no silêncio,  a pequena escrava tinha mãos pequenas e leves, e enquanto limpava com primo cuidado o ferimento da guerreia, essa foi incapaz de não pensar em uma criatura que mesmo tão debilitada e com fome ainda era capaz de enxergar mais que suas próprias necessidades. “Ela se preocupara comigo?”

“Xena, isso é somente fruto do medo, ela é sua escrava e não quer morrer na ponta de sua  espada como tanto outros... Ninguém se importa com um monstro” - E nesse momento viu sua importância sendo igualada a da escrava, embora fosse soberana  cabia a ela a mesma importância humanitária que se dava a um escravo, eram iguais.


Ao se por na tarefa de curar aquela que a alimentou e cuidou dela salvando sua vida mais de uma vez nos últimos dias, Gabrielle envolve-se no pensamento de quão verdade podia ser tudo que se relatara em uma infinidade de pergaminhos escritos sobre a monstruosa guerreira, temida conquistadora, senhora do mundo conhecido. Tudo que Gabrielle via abaixo das suas mãos era uma mulher atormentada e sozinha, até mesmo desprotegida...





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